Meus Amigos

sábado, 2 de novembro de 2013

Infortúnio Materno


                               

Em pleno hospital da Espiritualidade, pobre criatura estendeu-nos o olhar suplicante e rogou:
- O senhor consegue escrever para a Terra?
- Quando mo permitem - repliquei entre pesaroso e assombrado.
Quem era aquela mulher que me interpelava desse modo?
A fisionomia escaveirada exibia recordações da morte. A face inundada de pranto tinha
esgares de angústia e as mãos esqueléticas e entrefechadas davam a idéia de garras em
forma de conchas.
Dante não conseguiria trazer do Inferno imagem mais desolada de sofrimento e terror.
- Escreva, escreva! - repetia chorando.
- Mas escrever a quem?
- As mulheres... - clamou a infeliz. - Rogue-lhes não fujam da maternidade nobre e digna...
peço não façam do casamento uma estação de egoísmo e ociosidade...
Os soluços a lhe rebentarem do peito induziam-nos a doloroso constrangimento.
E a infeliz contou em lágrimas:
- Estive na Terra, durante quase meio século... Tomei corpo entre os homens, após
entender-me com um amigo dileto que seguiu, antes de mim, no rumo da arena carnal, onde
me recebeu nos braços de esposo devotado e fiel. Com assentimento dos instrutores, cuja
bondade nos obtivera o retorno à escola física, comprometemo-nos a recolher oito filhinhos,
oito corações de nosso próprio passado espiritual, que por nossa culpa direta e indireta
jaziam nas fumas da crueldade e da indisciplina... 
Cabia-nos acolhê-los carinhosamente,
renovando-lhes o espírito, ao hálito de nosso amor... 
Suportar-lhes-íamos as falhas
renascentes, corrigindo-as pouco a pouco, ao preço de nossos exemplos de bondade e renúncia... 
Nós mesmos solicitáramos semelhante serviço... 
Para alcançar mais altos níveis de evolução, suplicamos a prova reparadora... 
Saberíamos morrer gradativamente no sacrifício pessoal, 
para que os associados de nossos erros diante da Lei Divina
recuperassem a noção da dignidade.
A triste narradora fez longa pausa que não ousamos interromper e continuou:
- Entretanto, casando-me com Cláudio, o amigo a que me reportei, fui mãe de um filhinho,cujo nascimento não pude evitar...
Paulo, o nosso primogênito, era uma pérola tenra em nossas mãos... 
Despertava em meu ser comoções que o verbo humano não consegue reproduzir... 
Ainda assim, acovardada perante a luta, por mais me advertisse o esposo abençoado, transmitindo avisos e apelos da
Vida Superior, detestei a maternidade, asilando-me no prazer... Cláudio era compelido a gastar largas somas para satisfazer-me nos caprichos da moda... 
Mas a frivolidade social não era o meu crime. .. 
Nas reuniões mundanas mais aparentemente vazias pode a alma aprender muito quando resolve servir ao bem. .. 
Cristalizada, contudo, na preguiça, qual flor inútil a
viver no luxo dourado, por doze vezes pratiquei o aborto confesso... 
Surda' aos ditames da consciência que me ordenava o apostolado maternal, expulsei de mim os antigos laços que
em outro tempo se acumpliciavam comigo na delinqüência, assassinando as horas de trabalho que o Senhor me 
havia facultado no campo feminino... 
E, após vinte anos de teimosia delituosa, ante o auxílio constante que me era conferido pelo Amparo Celestial,
nossos Benfeitores permitiram, para minha edificação, fosse eu entregue aos resultados de minha própria escolha... 
Enlaçada magneticamente àqueles que a Divina Bondade me
restituiria por filhos ao coração e aos quais recusei guarida em minha ternura, fui obrigada a tolerar-lhes o assalto invisível, de vez que, seis deles, extremamente revoltados contra a
minha ingratidão, converteram-se em perseguidores de minha felicidade doméstica...
Fatigado de minhas exigências, meu esposo refugiou-se no vício, terminando a existência num suicídio espetacular... 
Meu filho, ainda jovem, sob a pressão dos perseguidores ocultos
que formei para a nossa casa, caiu nas sombras da alienação mental,desencarnando em tormento indescritível num desastre da via pública, e eu... pobre de mim, abordando a
madureza, conheci a dolorosa tumoração das próprias entranhas... 
A veste carnal, como que horrorizada de minha presença, expulsou-me para os domínios da morte, onde me arrastei
largo tempo, com todos os meus débitos terrivelmente agravados, sob a flagelação e o achincalhe daqueles a quem podia ter renovado com o bálsamo de meu leite e com a bênção
de minha dor...
A desditosa enferma enxugou as lágrimas com que nos acordava para violenta emoção e terminou:
- Fale de minha experiência às nossas irmãs casadas e robustas que dispõem de saúde para o doce e santo sacrifício de mãe! 
Ajude-as a pensar... 
Que não transformem o matrimônio na estufa de flores inebriantes e improdutivas, cujo perfume envenenado lhes abreviará o passo na direção das trevas... 
Escreva!... 
Diga-lhes algo do martírio que espera, além da morte,
quantos quiseram ludibriar. a vida e matar as horas.
A mísera doente, sustentada por braços amigos, foi conduzida a vasta câmara de repouso e, impressionados com tamanho infortúnio, tentamos cumprir-lhe ri desejo e transmitir-lhe a
palavra; contudo, apesar do respeito que consagramos à mulher de nosso tempo, cremos que o nosso êxito seria mais seguro se caminhássemos para um cemitério e assoprássemos
a mensagem para dentro de cada túmulo.

Contos e Apólogos- Irmão 'X' -Francisco Cândido Xavier, 

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