Deve-se comemorar a Páscoa?
Que tipo de celebração, evento ou homenagem é
permitida nas instituições espíritas?
Como o Espiritismo visualiza o acontecimento
da paixão, crucificação, morte e ressurreição de Jesus?
Em linhas gerais, as instituições espíritas
não celebram a Páscoa, nem programam situações específicas para “marcar” a
data, como fazem as demais religiões ou filosofias “cristãs”. Todavia, o
sentimento de religiosidade que é particular de cada ser-Espírito, é, pela
Doutrina Espírita, respeitado, de modo que qualquer manifestação pessoal ou,
mesmo, coletiva, acerca da Páscoa não é proibida, nem desaconselhada.
O certo é que a figura de Jesus assume
posição privilegiada no contexto espírita, dizendo-se, inclusive, que a moral
de Jesus serve de base para a moral do Espiritismo. Assim, como as pessoas, via
de regra, são lembradas, em nossa cultura, pelo que fizeram e reverenciadas nas
datas principais de sua existência corpórea (nascimento e morte), é
absolutamente comum e verdadeiro lembrarmo-nos das pessoas que nos são caras ou
importantes nestas datas.
Não há, francamente, nenhum mal nisso.Mas,
como o Espiritismo não tem dogmas, sacramentos, rituais ou liturgias, a forma
de encarar a Páscoa (ou a Natividade) de Jesus, assume uma conotação bastante
peculiar. Antes de mencionarmos a significação espírita da Páscoa, faz-se
necessário buscar, no tempo, na História da Humanidade, as referências ao
acontecimento. A Páscoa, primeiramente, não é, de maneira inicial, relacionada
ao martírio e sacrifício de Jesus.
Veja-se, por exemplo, no Evangelho de Lucas
(cap. 22, versículos 15 e 16), a menção, do próprio Cristo, ao evento: “Tenho
desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes da minha paixão. Porque
vos declaro que não tornarei a comer, até que ela se cumpra no Reino de Deus.”
Evidente, aí, a referência de que a Páscoa já era uma “comemoração”, na época
de Jesus, uma festa cultural e, portanto, o que fez a Igreja foi
“aproveitar-se” do sentido da festa, para adaptá-la, dando-lhe um novo
significado, associando-o à “imolação” de Jesus, no pós-julgamento, na execução
da sentença de Pilatos.
Historicamente, a Páscoa é a junção de duas
festividades muito antigas, comuns entre os povos primitivos, e alimentada
pelos judeus, à época de Jesus. Fala-se do “pesah”, uma dança cultural,
representando a vida dos povos nômades, numa fase em que a vinculação à terra
(com a noção de propriedade) ainda não era flagrante. Também estava associada à
“festa dos ázimos”, uma homenagem que os agricultores sedentários faziam às
divindades, em razão do início da época da colheita do trigo, agradecendo aos
Céus, pela fartura da produção agrícola, da qual saciavam a fome de suas
famílias, e propiciavam as trocas nos mercados da época. Ambas eram comemoradas
no mês de abril (nisan) e, a partir do evento bíblico denominado “êxodo” (fuga
do povo hebreu do Egito), em torno de 1441 a.C., passaram a ser reverenciadas
juntas. É esta a Páscoa que o Cristo desejou comemorar junto dos seus mais
caros, por ocasião da última ceia. Logo após a celebração, foram todos para o
Getsêmani, onde os discípulos invigilantes adormeceram, tendo sido o palco do
beijo da traição e da prisão do Nazareno. Mas há outros elementos “evangélicos”
que marcam a Páscoa. Isto porque as vinculações religiosas apontam para a
quinta e a sexta-feira santas, o sábado de aleluia e o domingo de páscoa.
Os primeiros relacionam-se ao “martírio”, ao
sofrimento de Jesus – tão bem retratado neste último filme hollyodiano (A
Paixão de Cristo, segundo Mel Gibson) –, e os últimos, à ressurreição e a
ascensão de Jesus. No que concerne à ressurreição, podemos dizer que a
interpretação tradicional aponta para a possibilidade da mantença da estrutura
corporal do Cristo, no post-mortem, situação totalmente rechaçada pela ciência,
em virtude do apodrecimento e deterioração do envoltório físico. As Igrejas
cristãs insistem na hipótese do Cristo ter “subido aos Céus” em corpo e alma, e
fará o mesmo em relação a todos os “eleitos” no chamado “juízo final”. Isto é,
pessoas que morreram, pelos séculos afora, cujos corpos já foram decompostos e
reaproveitados pela terra, ressurgirão, perfeitos, reconstituindo as estruturas
orgânicas, do dia do julgamento, onde o Cristo, separá justos e ímpios. A
lógica e o bom-senso espíritas abominam tal teoria, pela impossibilidade física
e pela injustiça moral. Afinal, com a lei dos renascimentos, estabelece-se um
critério mais justo para aferir a “competência” ou a “qualificação” de todos os
Espíritos. Com “tantas oportunidades quanto sejam necessárias”, no “nascer de
novo”, é possível a todos progredirem. Mas, como explicar, então as “aparições”
de Jesus, nos quarenta dias póstumos, mencionadas pelos religiosos na alusão à
Páscoa? A fenomenologia espírita (mediúnica) aponta para as manifestações
psíquicas descritas como mediunidades. Em algumas ocasiões, como a conversa com
Maria de Magdala, que havia ido até o sepulcro para depositar algumas flores e
orar, perguntando a Jesus – como se fosse o jardineiro – após ver a lápide
removida, “para onde levaram o corpo do Raboni”, podemos estar diante da
“materialização”, isto é, a utilização de fluido ectoplásmico – de seres
encarnados – para possibilitar que o Espírito seja visto (por todos). Igual
circunstância se dá, também, no colóquio de Tomé com os demais discípulos, que
já haviam “visto” Jesus, de que ele só acreditaria, se “colocasse as mãos nas
chagas do Cristo”. E isto, em verdade, pelos relatos bíblicos, acontece.
Noutras situações, estamos diante de uma outra manifestação psíquica conhecida,
a mediunidade de vidência, quando, pelo uso de faculdades mediúnicas, alguém pode
ver os Espíritos. A Páscoa, em verdade, pela interpretação das religiões e
seitas tradicionais, acha-se envolta num preocupante e negativo contexto de
culpa. Afinal, acredita-se que Jesus teria padecido em razão dos “nossos”
pecados, numa alusão descabida de que todo o sofrimento de Jesus teria sido
realizado para “nos salvar”, dos nossos próprios erros, ou dos erros cometidos
por nossos ancestrais, em especial, os “bíblicos” Adão e Eva, no Paraíso.
A presença do “cordeiro imolado”, que cumpre
as profecias do Antigo Testamento, quanto à perseguição e violência contra o
“filho de Deus”, está flagrantemente aposta em todas as igrejas, nos crucifixos
e nos quadros que relatam – em cores vivas – as fases da via sacra. Esta
tradição judaico-cristã da “culpa” é a grande diferença entre a Páscoa
tradicional e a Páscoa espírita, se é que esta última existe.
Em verdade, nós espíritas devemos reconhecer
a data da Páscoa como a grande – e última lição – de Jesus, que vence as
iniqüidades, que retorna triunfante, que prossegue sua cátedra pedagógica, para
asseverar que “permaneceria eternamente conosco”, na direção bussolar de nossos
passos, doravante. Nestes dias de festas materiais e/ou lembranças do
sofrimento do Rabi, possamos nós encarar a Páscoa como o momento de
transformação, a vera evocação de liberdade, pois, uma vez despojado do
envoltório corporal, pôde Jesus retornar ao Plano Espiritual para, de lá,
continuar “coordenando” o processo depurativo de nosso orbe. Longe da remissão
da celebração de uma festa pastoral ou agrícola, ou da libertação de um povo
oprimido, ou da ressurreição de Jesus, possa ela ser encarada por nós,
espíritas, como a vitória real da vida sobre a morte, pela certeza da
imortalidade e da reencarnação, porque a vida, em essência, só pode ser
conceituada como o amor, calcado nos grandes exemplos da própria existência de
Jesus, de amor ao próximo e de valorização da própria vida.
Nesta Páscoa, assim, quando estiveres junto
aos teus mais caros, lembra-te de reverenciar os belos exemplos de Jesus, que o
imortalizam e que nos guiam para, um dia, também estarmos na condição
experimentada por ele, qual seja a de “sermos deuses”, “fazendo brilhar a nossa
luz”. Comemore, então, meu amigo, uma “outra” Páscoa. A sua Páscoa, a da sua
transformação, rumo a uma vida plena.
Texto do sr. Marcelo Henrique (SC) -Diretor
de Política e Metodologias de Comunicação, da Abrade (Associação Brasileira de
Divulgadores do Espiritismo) e Delegado da CEPA (Confederação Espírita
Pan-Americana) para a Grande Florianópolis-SC
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